Luiz Paulo Faccioli

Bibiu e a Sétima Arte - Homero Fonseca

Luiz Paulo Faccioli


Achar o título perfeito é sempre um desafio, tarefa que, não raro, o autor procura dividir com seu editor ou mesmo delegar a ele, na suposição de que esse pequeno detalhe seja decisivo ao êxito das vendas. Se, obviamente, um nome por si só não é garantia de sucesso editorial, tampouco sua escolha deve ser guiada apenas pela questão mercadológica. Bom título é aquele que, além de instigar a curiosidade do leitor, sintetiza de alguma forma a essência da obra — ou então, pelo caminho inverso, traindo completamente qualquer expectativa que um desavisado possa criar — e sem abrir mão da originalidade.

Homero Fonseca acerta em cheio na escolha do título de seu primeiro romance: na capa idealizada por Luiz Arrais, um Roliúde aparece substituindo as letras brancas de “Hollywood” numa fotomontagem sobre o célebre letreiro da meca do cinema em Los Angeles. A idéia reflete o conteúdo e o caráter da obra e funciona tão bem que faz o subtítulo — Um romance picaresco, aventuroso e cinematográfico — soar redundante, sinal talvez de que Fonseca tenha apostado de menos na força original da caricatura que usou para batizar seu livro.

Se hoje as salas de cinema no interior do Brasil compõem ainda uma vergonhosa estatística de escassez, não é difícil imaginar como seria a situação nos cafundós de Pernambuco há setenta anos. Esse ambiente agreste, de gente modesta às voltas com crendices e causos e onde “quem não é Cavalcanti é Cavalgado”, forma o cenário perfeito para as aventuras do pícaro Bibiu, para quem “as belezas desta vida são o trem, o cinema e a mulher” — e que, como era de se esperar, acaba sempre envolvido com uma dessas suas preferências. Ao cabo de uma longa e quase sempre exótica lista de ocupações, que inclui ser “fiscal de animais de grande porte, locutor de circo e de parque de diversões, camelô, homem da cobra e outras ciências mais”, Bibiu descobre uma forma sui generis de ganha-pão: depois de assistir a uma fita em exibição no Cinema Glória em Recife, ele conta num bar o que viu na tela. A turma gosta, e alguém que assiste à cena sugere que ele poderia ganhar dinheiro com aquele seu talento. Nasce ali o “contador de filmes”. Bibiu passa a viajar pelo interior pernambucano à cata de platéias interessadas em ouvir as histórias dos filmes em cartaz na cidade grande. Serve de palco para sua performance a praça pública, o pátio da igreja, a casa de um coronel, e uma lata velha de manteiga, decorada com fotos de artistas de cinema, faz as vezes de bilheteria.

Roliúde estrutura-se em 21 capítulos. Os de número ímpar trazem a trajetória do protagonista propriamente dita, narrada em primeira pessoa na forma de um longo depoimento cujo propósito não é revelado a um “doutor” de identidade igualmente obscura. Na voz desse exímio contador de causos e emulando a literatura de cordel, a biografia de Bibiu vira uma rapsódia de relatos hilários onde a tragédia não tem vez e a fantasia é exercitada com um convencimento tal que acaba confundindo o leitor/ouvinte, para quem se torna muitas vezes impossível distinguir o que é real e o que há de pura invenção em cada episódio, embora o alerta seja dado logo na primeira página:

“Posso mesmo lhe dizer que a história da minha outrora afamada pessoa é uma mistura de lenda inventada e verdade verdadeira, um eninhado de acontecências que nem eu mesmo sei mais o que é de vera, o que é invenção.”

Porém, logo após esse brevíssimo flerte com a verdade, a narrativa recupera o tom farsesco preponderante:

“A começar pela escuridão que assombrou o mundo na hora em que eu me inaugurei. Foi eu nascendo e o mundo empretecendo, num desadoro de gente chorando e bicho berrando de dar agonia. Daí em vante, é um sucedido atrás do outro, contado e recontado pelos quatro cantos da terra.”

Vê-se aqui as primeiras pinceladas na construção de um personagem dos mais fascinantes. Bibiu tem um pouco do malandro típico dos tempos áureos da boemia carioca, outro tanto de Vadinho, o marido boa-vida e mulherengo da Dona Flor de Jorge Amado, e, ao contrário da maioria dos nordestinos que descem às capitais mais ricas e meridionais do país para compor uma massa anônima e servil, ele volta de sua tentativa frustrada de ganhar a vida em São Paulo do mesmo jeito que partiu: com uma mão na frente e outra atrás, mas sem baixar a crista. Sua lábia lhe garante a sobrevivência e também o sucesso com as mulheres em todo lugar por onde passa — ou talvez seja essa mais uma das muitas vantagens que ele gosta de contar. O exagero e a grandiloqüência também fazem parte do arsenal próprio de quem adora trombetear suas façanhas aos quatro ventos. Bibiu é, em suma, o que se costuma dizer de um tipo bem brasileiro: carismático, bom-papo e mestre nas artes do improviso. Não chega a ser um primor de honestidade, mas tampouco serve nele o figurino de mau-caráter. O que de fato o distingue de outros tantos personagens gêmeos da literatura brasileira é sua paixão pelo cinema, culminando com a maneira extravagante que ele encontrou para tirar proveito disso.

Caso se limitasse apenas aos seus onze capítulos ímpares, Roliúde ainda assim restaria uma obra interessante, sem contudo haver explorado condignamente a faceta mais peculiar do protagonista e mote principal do romance. Numa solução muito bem engendrada, a insólita figura do contador de filmes entra em ação nos capítulos pares para narrar os enredos de dez títulos do cinema hollywoodiano e brasileiro da década de 40, livremente adaptados no linguajar pitoresco do narrador e bem ao gosto de seu público. Eis aí, sem dúvida alguma, a melhor porção do livro. As versões de Bibiu para clássicos como ... E o Vento Levou, Casablanca, Sansão e Dalila e No Tempo das Diligências são impagáveis e merecem figurar desde já entre as mais divertidas páginas da literatura nacional.

A fórmula, de aparente simplicidade, esconde um exercício sutil. Fonseca confessa ter custado a encontrar o registro certo, de forma a que ele refletisse a personalidade errática de Bibiu, este que tem “um pé na caatinga e outro nas salas de cinema da capital”, mas também usando um vocabulário e um jeito de falar próprio da época e da região onde o romance está ambientado. Há um viés ideológico nessa composição: Fonseca acredita que resgatar tais características é o meio de salvar uma identidade ameaçada constantemente pelo efeito padronizador e vulgarizador da globalização. Havia também um outro obstáculo: fugir do maneirismo em relação à “fala nordestina”, que a televisão tanto ajudou a estereotipar.

Estruturada assim a linguagem, a dificuldade maior já estava vencida. Os relatos de filmes, na interpretação de Bibiu, ganham então o mesmo sabor dos demais causos narrados no livro e com eles chegam até mesmo a dialogar. Por exemplo: entre os ouvintes assíduos de Bibiu está um coronel fazendeiro que freqüentemente o hospeda, generoso tanto na hospitalidade quanto na hora de pagar pelos serviços, mas alimentando uma pequena idiossincrasia, a de só apreciar fitas que tenham onça. Bibiu não se faz de rogado:

“Dali em vante, toda vez que eu contava um filme ali pelo Pajéu, botava uma onça no meio. Até na Paixão de Cristo (...) inventei que, quando Jesus tava crucificado, coitado, apareceu uma suçuarana botando pra correr os apóstolos e até os guardas romanos. Mas essa aí, depois de rondar a cruz várias vezes, olhou pra cima, reconheceu quem tava ali e foi embora sem fazer mal a ninguém.”

Além de “picaresco, aventuroso e cinematográfico”, Roliúde é um romance delicioso. E para concluir na linha em que se começou, ênfase dada ao detalhe, uma pequena curiosidade: Homero Fonseca fez Bibiu vir ao mundo em 1911, o mesmo ano em que o italiano Ricciotto Canudo lançou seu Manifesto das Sete Artes, onde o cinema figurou pela primeira vez como a sétima arte. Coincidência, ou quem sabe tenha sido uma última homenagem de quem demonstra ter se preparado muito bem antes de se lançar ao desafio de ser original num terreno que muitos já trilharam antes.

Trecho:

Gente boa, o filme que vou contar hoje se chama ... E o Vento Levou. É a história de uma mulher bonita mas muito ambiciosa e metida a cu-doce, com licença da palavra. A história se passa na América do Norte, no tempo antigo, quando aconteceu uma guerra lá, o Norte contra o Sul. A mocinha se chamava Scarlete... é, esses gringos têm mania de botar nome esquisito nos filhos. Ninguém vê nos filmes americanos uma moça chamada Maria do Carmo, Conceição ou Francineide. É tudo nome enrolado, feito o dessa Scarlete.”

O autor:

Homero Fonseca, pernambucano de Bezerros, é jornalista e escritor. Atual diretor editorial da revista Continente Multicultural, do Recife, foi diretor de redação da Folha de Pernambuco e editor-chefe do Diário de Pernambuco, dentre outras atividades no jornalismo. Foi ainda coordenador de programação da V e da VI Bienais Internacionais do Livro de Pernambuco, em 2005 e 2007. Como escritor, tem livros publicados em diversos gêneros: ensaio, reportagem, biografia, crônica e conto. À guisa de epígrafe, seu blog traz uma paródia reveladora de sua personalidade literária: “só sei que nada sei, mas desconfio de muita coisa”.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de dezembro/2007

 

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